terça-feira, 14 de agosto de 2007

A Origem das Preocupações Sociais

A “Direita”, para se livrar das críticas feitas por alguma “Esquerda”, recorre sistematicamente à acusação de “marxismo”, chamando a atenção para o desastre que foi a experiência “socialista” da União Soviética. Ou seja, quem critica o capitalismo neo-liberal, globalizante, só pode ser um retrógrado marxista que nada mais deseja do que repetir os erros soviéticos, apoiado ainda por cima num horroroso totalitarismo.

É evidente que só um louco quereria repetir a experiência soviética, mas isso não significa que o ideal social tenha perdido a razão de ser, ou que o capitalismo seja o sistema sob o qual teremos de viver.

Curiosamente, há muitos séculos que o problema da justiça social se coloca, e que há um corpo doutrinário – que nada tem a haver com o marxismo, até porque o antecedeu de muito -, que nos dá orientações preciosas sobre a maneira de actuar em comunidade. A chamada Doutrina Social da Igreja – que nos propomos analisar neste Blogue com algum pormenor -, cuja origem está nos Evangelhos e nos escritos dos doutores da Igreja desde os primeiros séculos do cristianismo, há muito aponta para coisas tão óbvias como o “bem comum”, o destino comum dos bens terrenos, o caracter relativo do direito de propriedade, e até o imperativo ético e moral da opção pelos mais pobres. Apenas como uma primeira ilustração disto passo a citar (em tradução própria do texto em inglês) a seguinte passagem da obra Dos Deveres do Clero, de Sto. Ambrósio de Milão, que viveu no século IV d.C.:

Em seguida consideraram estar de acordo com a justiça que se tratasse propriedade comum, ou seja pública, como pública, e propriedade privada como privada. Mas isto nem sequer está de acordo com a natureza, pois a natureza disponibilizou todas as coisas para uso comum de toda a gente. Deus ordenou que todas as coisas fossem produzidas de forma a que houvesse comida para todos, e que a terra fosse propriedade comum de todos. A natureza produziu portanto um direito comum para todos, mas a ganância transformou-o num direito apenas para alguns.” (Sto. Ambrósio de Milão, Dos deveres do Clero, Livro I, Cap. XXVIII – 132)

Não é preciso recorrer a Karl Marx para defender valores sociais de uma forma radical. O cristianismo há muito que se encarregou de tal fazer, mas são muitos os “cristãos” a quem convém substituir um imperativo de partilha e um respeito dos direitos dos mais pobres por uma vaga caridade voluntária, cujos limites são definidos pelos interesses de quem a pratica. A Igreja há muito que afirma que a propriedade privada só é legítima quando é posta ao serviço de todos, mas os nossos piosos “cristãos” consideram-na um direito absoluto que lhes permite canalizar para si todo o benefício da sua exploração.

Se há elemento da ideologia marxista que podemos adicionar ao que a Igreja há muito determina, é o de “luta de classes”, não como mecanismo desejável mas como elemento objectivo das relações dentro da comunidade. O espírito de ganância que parece ser próprio do Homem manifesta-se de forma individual – cada um procura o máximo para si -, mas a procura da eficácia na prática predatória levou a que os homens procurassem cumplicidades que tornassem as suas ambições mais faceis de alcançar. A mesma lógica que leva o bandido a associar-se com outros bandidos no seio do bando, leva os exploradores a associarem-se na exploração, o que leva a que os explorados procurem igualmente associar-se na resistência à exploração. É a eterna divisão entre predadores e presas, a que Marx optou por chamar “luta de classes”. E o curioso é que a Igreja, ao proclamar a opção pelos pobres, está a reconhecer essa realidade, já que contrapõe os interesses e direitos dos pobres aos interesses dos que o não são. Para Marx havia a classe burguesa e a classe proletária, para a Igreja há os ricos e os pobres. E tal como Marx não queria o mal dos burgueses mas a sua integração numa sociedade sem classes, também a Igreja não quer mal aos ricos, quer levá-los a colocar a sua riqueza ao serviço de todos e impedir que continuem a enriquecer à custa dos outros.

A propaganda capitalista, a posse quase exclusiva dos meios de comunicação social pelos agentes da oligarquia, tem tentado – com bastante sucesso, deve-se reconhecer – impedir que nos apercebamos do óbvio. Os lobos têm, até agora, conseguido que sejam os cordeiros a vir oferecer-se à sua gula, convencidos da inevitabilidade do seu destino como alimento. Os indícios do desastre económico e ambiental que se aproxima tornam urgente que os cordeiros se apercebam de que não têm de ser comidos, e que podem derrotar os lobos. Um mundo sem lobos pode não ser possível, mas é tempo de os tornar vegetarianos.

2 comentários:

IzNoGuud disse...

Não são poucos aqueles que defendem que Jesus Cristo, foi o primeiro Comunista ;)

Um abraço,

mch disse...

Com apreço reproduzido em
http://blog-de-causas.blogspot.com/2007/08/origem-das-preocupaes-sociais-por-nuno.html